terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

LEMBRANÇAS OPORTUNAS (final)

Carlos Chagas
  • Na tarde de 31 de março, consegui localizá-lo pelo telefone. Eu trabalhava no "Globo" e tivera a informação de que Juscelino havia estado no palácio das Laranjeiras, com o presidente João Goulart.
  • Ele foi seco, do outro lado da linha: "Estive sim, estou chegando agora do Laranjeiras. Mas não me pergunte mais nada porque não vou contar."Os militares batiam cabeça, com a queda de Jango, até que dez dias depois de os tanques terem ido para a rua, os generais decidiram botar ordem na bagunça e substituir o Comando Supremo da Revolução (Costa e Silva, Augusto Rademaker e Francisco de Assis Correia de Melo) pelo general Castelo Branco.
  • Imaginando que as instituições funcionavam, ou fingindo muito bem, Castelo Branco quis ser eleito pelo Congresso.
  • Mesmo com as esquerdas cassadas, votos eram necessários, e o futuro presidente foi recebido pela direção do PSD, maior partido nacional.
  • Foi na casa do deputado Joaquim Ramos, em Copacabana.
  • Lá estavam Amaral Peixoto, José Maria Alkimin, Negrão de Lima, Martins Rodrigues e outros. Juscelino também.
  • A conversa seguia amável, mas tensa, e JK não parava de olhar o relógio de pulso.
  • Seu diálogo com Castelo foi curto. Quis saber se teríamos eleições presidenciais no ano seguinte, e o futuro presidente garantiu que sim.
  • Malicioso, ao notar que Juscelino continuava olhando o relógio, comentou: "Senador, percebo que o senhor deve ter outro compromisso.
  • Não se prenda por mim, ainda que eu tenha reservado esta noite para dialogar com o PSD".
  • Por mais estranho que pudesse parecer, Juscelino retirou-se logo depois, para espanto dos companheiros.
  • Na manhã seguinte, Negrão de Lima telefonou: "Juscelino, você ficou maluco? Abandonar o todo poderoso general que vai tomar posse amanhã! O que você tinha de tão urgente assim?"
  • Resposta: "Uma reunião na casa do Bené Nunes, que ia tocar piano para um grupo de amigos..."
  • Como senador por Goiás, JK votou em Castelo Branco, sem perceber que se transformaria na maior vítima do regime de arbítrio.
  • Não demorou para que o mandato primeiro general-presidente fosse prorrogado por um ano, sob o argumento de que o país não poderia viver em 1965 uma convulsão eleitoral.
  • A verdade é que a impopularidade da chamada Revolução aumentava dia a dia e todos previam que Juscelino seria eleito por larga margem.
  • Quando da prorrogação, foi alertado de que dificilmente o deixariam ser candidato, mas só acreditou quando, em julho, teve seu mandato cassado e seus direitos políticos suspensos por dez anos.
  • Seu maior algoz foi o então governador Carlos Lacerda, que também se julgava candidato.
  • Avisado por José Maria Alkimin de que seria atingido pelo Ato Institucional, veio a Brasília para pronunciar seu último discurso.
  • Contou-me depois que após o protesto feito pela tribuna, uma das maiores peças de oratória que produziu, deixou o plenário do Senado pelo corredor central.
  • Rostos se viravam quando passava. Nenhum cumprimento. Desceu com Dona Sarah até o saguão principal do Congresso. A vida soube ser cruel com quem, meses antes, era bajulado aos extremos.
  • Um apressado retorno do exílio levou-o à humilhação de responder a dois Inquéritos Policiais Militares, tratado com desdém por coronéis e majores, obrigado a passar horas sentado num banquinho, sem direito sequer à presença de seu advogado, Sobral Pinto.
  • Logo voltou para Portugal, sendo que no aeroporto do Galeão, pela primeira vez na vida, botou um pequeno revolver na cintura.
  • O Rio estava cheio de boatos de que não o deixariam embarcar, que o prenderiam na hora.
  • Disse-me que se fosse humilhado, ou se Dona Sarah submetida a violências, atiraria no primeiro oficial da Aeronáutica que surgisse à sua frente. Seria morto depois, mas com honra.
  • O tempo passou, a angústia de JK crescia em progressão geométrica, longe do Brasil. Pensou em dar fim à vida, num Natal passado em Paris só com o fiel coronel Afonso Heliodoro.
  • No final de 1966 o general Costa e Silva havia imposto sua candidatura ao presidente Castelo Branco, mas as relações entre eles eram tão tensas que o segundo presidente do ciclo revolucionário entendeu de viajar para o exterior.
  • Fui mandado acompanhá-lo, pelo "O Globo". Lisboa era a primeira parada.
  • No intervalo de uma visita e outra do general a autoridades portuguesas, em companhia do jornalista Washington Novaes, aproveitei para visitar o ex-presidente Juscelino.
  • Ele tinha escritório no Chiado, bem defronte à Lisboa Antiga.
  • Recebeu-nos emocionado, pediu notícias do Brasil e em dado momento, levou-nos á sacada, para ver a vista.
  • Estávamos os três de frente para a paisagem e aí percebi o porque da iniciativa. Olhando-o de soslaio, vi que chorava.
  • De noite, no hotel, um daqueles coronéis truculentos da comitiva veio tirar satisfações.
  • Como tínhamos ido conversar com o inimigo da Revolução? Para falta de sorte dele o general Costa e Silva vinha saindo do elevador e quis saber sobre o que discutíamos.
  • Contei sobre a visita e ainda perguntei ao futuro presidente: "Se um dia desses, passeando na rua, o senhor desse de frente com o presidente Juscelino? Faria o quê?"
  • O sempre surpreendente general respondeu, encerrando o assunto: "Nos cumprimentaríamos, como todo brasileiro deve fazer com outro brasileiro, quando se encontram no exterior..."
  • Juscelino acabou voltando ao Brasil, mesmo suspenso em seus direitos políticos, proibido de entrar em Brasília e recebendo os ônus de se haver composto com Carlos Lacerda, na estranha Frente Ampla que os reuniu a João Goulart numa luta efêmera pela volta do país à democracia.
  • O resultado foi a agitação dos radicais e a edição do Ato Institucional número 5, o mais hediondo de todos.
  • O presidente era paraninfo de uma turma de formandos, na noite de 13 de dezembro de 1968.
  • Depois de discursar no Teatro Municipal, no Rio, ao sair foi preso, conduzido ao Forte Copacabana, onde permaneceu alguns dias.
  • Horror dos horrores, naquela mesma hora Carlos Lacerda também tinha sido detido e conduzido a um quartel da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
  • O cárcere não deixou sequelas em JK, ao contrário do antigo desafeto. (final).